terça-feira, 17 de agosto de 2010

conto do vigário

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Como de costume, saí para minha caminhada noturna. Eram vinte e três horas. Ainda no apartamento, botei minha camisa amarela, minha calça surrada, meu sapato velho, meu casaco de calda longa e dei comida para os meus cães e gatos. Quando abri a porta, senti a brisa mórbida da cidade nas minhas entranhas. Nos becos, ouvi estupros, assassinatos e roubos. Nos bares vivi a bebida desconcertante. Nos apartamentos eu imaginei pessoas sonhando. Apenas sonhos. Como pode ver, hoje não teve nada de novo pelas ruas. Dói saber que banalizei estes absurdos.

Toda noite, enquanto observo a insanidade da nossa raça, eu leio os cartazes pregados nos postes desta cidade: Videntes, oficinas de carro, fretes, prostitutas, empréstimos, procura de animais perdidos... Faz anos que me preocupo com o último destes itens. Passo semanas procurando o mesmo animal para devolver ao seu dono. Nada neste mundo deveria ter a oportunidade de assistir à nossa podridão. Preocupo-me principalmente com gatos e cães, pois as aves podem sumir. Já os animais que não possuem um lar, eu os acolho.

Mas esta noite foi diferente. Depois de vinte e três anos vagando pela escuridão, dirigindo a minha palavra somente para animais irracionais, esta noite precisei conversar. Eu não agüentava mais a angústia de ter a escória de todos guardada somente para mim. Disquei um número aleatório no meu telefone residencial que não era usado todos esses anos. E impressiono-me como você, estranho que está me ouvindo, não desligou o telefone e me ouviu atenciosamente. Não vim trazer-te pesadelos. Apenas vim trazer-te a verdade. Obrigado pela ajuda.

O procurador de animais desligou o telefone. Levantou-se do sofá mofado e dirigiu-se às suas crias. Eram no total vinte e três criaturas. Em seus olhos, via-se a gratidão que eles tinham pelo procurador. Com a face demonstrando o cansaço de viver, o velho homem deitou na sua cama de trapos, desejou não ter nascido e adormeceu para acordar no seu próximo dia de desespero.

Distante de lá, paralisado em seu assento, estava um nomeado executivo, refletindo sobre o monólogo que acabara de ouvir no telefone...


(Guilherme Reis Holanda)

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