quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Conto desnecessário

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Tinha começado como um dia parecido com os outros, e isso já era motivo para ser diferente. A agitação foi aparecer por volta de dezenove horas e nos ouvidos do menino, que nao previu o acidente ao elaborar seus planos de revolta horas antes, soava cada vez mais intensa a Marcha Eslava de Tchaikovsky de um pequeno rádio indesligável que distanciava dois quarteirões dali.
Era inicio de tarde ainda quando seu rosto se enxaguou. Na casa de sua amante, o menino sonhava com uma pequena pitada de liberdade em sua iniciante vida. Seus pés se prenderam nas injustiças do caminho, e, como cipós ardentes, o arrastaram para dentro de uma alcova fétida e úmida. Enclausurado da mais profunda agonia de não viver, resolveu encarar seu pai e, de uma vez por todas, eliminar as correntes enferrujadas de seus punhos e tornozelos.
Sua amante advertiu.
Entre os dois existia uma transcendência espiritual que levava a compreensão além do amor, mas ele não pode se conter em caminhar para trás. Sabia que era preciso uma atitude decisiva naquele jogo. Os carinhos da moça o prepararam mentalmente para tal feito.

Dezessete horas. Saiu à rua. A sua caminhada infindável até seu apartamento foi atrasada inicialmente pelo encontro com quatro palhaços e um campo de orquideas que na ida não estava ali. Aos poucos as cores foram se transformando em moscas. Ao chegar em casa, o jantar estava posto. Aquela postura de familia normal pulsava ódio em suas veias. Foi então que seu pai novamente abriu o tópico:
- E você, nada quer da vida? Só sabe ficar por aí fazendo esses lixos que você chama de arte?
Seu sangue virou um exército. Seus vasos viraram quartéis. Suas idéias viraram guerra. Retrucou:
-É notável que um primata troglodita que nem você não entenda a essência de viver. Beirando a morte, ainda não descobriste o que é felicidade. Olhe ao seu redor. Essa merda que você chama de família te odeia. Seu fim é previsível: A solidão.
Num impulso quase que magnético, o pai do menino levantou a mão e com um golpe certeiro o jogou no chão. A atmosfera da cozinha era seca, de algum fundo infernal saiam sentimentos que icendiavam a cena com uma luz vermelha e o pequeno rádio berrava canções de morte inaldíveis ao ouvido humano.
Foi então que a biologia mutante junto à organização atomística fizeram seu papel. O menino sentiu um frio na mente e uma infervecencia nos músculos. Seus olhos reviraram para o nada e seu corpo tremeu. Tremeu uma dança sem ritmo. Tremeu o silêncio da música que não tocava, e depois de travessia do corredor eterno da insanidade, percebeu que tal convulsão o tirara as pernas...

Depois de ter sido rejeitada pelo rapaz, agora paralítico, sua amada quebrava o chão de casa valsando a sonata mais triste de Beethoven, que vinha de quatro rádios a dois quarteirões dali. Uma labareda de fogo saiu de sua lareira, chicoteou risos pela casa e acolheu as menina em seus braços transformando-a em cinzas.
Assim, ela pôde deleitar-se no aconchego da lenha carbonizada e repensar na essência dos minerais que nos compõe. Desde sua água corpórea ebulindo ao seus sais pipocando nas chamas, percebeu, finalmente, que carbonos em qualquer estado físico também contêm alma.



(Guilherme Reis Holanda)

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